Maracujá

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Sempre que eu volto­­ a escrever penso no pq de ter parado e é sempre uma reflexão. Mas seja qual for o motivo, sempre tem a ver com a paixão. Daquilo que se faz com o coração. Pq a gente sempre acaba priorizando as coisas da forma errada, invertendo os papéis, passando do ponto.

Você abre os olhos, pensa se levanta ou se espera, mas acaba por esperar. E então, durante o dia, você espera. Espera o sinal, espera chegar no horário, espera o retorno, espera o download, espera a hora de ir embora. Chega em casa cansado, mas ainda espera… Espera que hoje você consiga fazer aquela receita, espera conseguir tocar aquela velha música ao violão, espera poder ficar na preguiça um pouco antes de dormir e, por falar em dormir, espera que hoje você possa dormir cedo, para que amanhã, ao acordar, você escolha o outro caminho. Que, ao invés de esperar, você se levante.

Mas o que a paixão tem a ver com isso? Bom, ela te faz levantar pq já não é mais o piloto automático da rotina de trabalhar pra ganhar dinheiro ou colocar as obrigações na frente do prazer.

E eu pensei nisso hoje, enquanto assistia um queijo parmesão gratinar o recheio de uma abobrinha recheada, que ia ao forno com uma graça digna de cinema. É estranho, eu sei. Mas é como você diferencia o que você sente de verdade do que você apenas deixa passar. E a gente pode até esperar uma vida toda pra se apaixonar por alguma coisa, mas a paixão está sempre ali, te mostrando o que realmente te faz levantar.

(Barbara Marry – Dezembro 2015)

TRICOT

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Eu lembro que era frio, assim como o dia de hoje. Eu não me importava tanto porque o frio não era tão frio, mas era desculpa pra poder escapar com você pra tomar algo quente. Uma sopa ou um conhaque. Eu me lembro que conhecia pouco de você. Lembro que até as coisas mais comuns se tornavam divertidas. Como aquele dia que vimos patos no lago e um senhor sentado em um banco. E você apontava para os patos.

Lembro também que você me pegava de surpresa e queria que eu descobrisse o mundo. Você queria me mostrar o mundo mas fez muito mais que isso: me deixou descobrir o teu mundo. E fiz dele minha nova casa. E lembro que também te fiz descobrir coisas do meu mundo, que te apresentei pouco do que sei da minha vida e que, mesmo que pequenas, essas coisas também ficaram na sua memória.

Lembrança, depois de lembrança, depois de lembrança, depois de lembrança… E tudo foi se construindo, como num tricotar de um casaco. Lembro do cheiro de saudade que ficava em mim quando a gente se despedia e do nosso suor que se encontrava quando era hora de rever.

Nesse casaco pronto e quentinho, vi muitas vezes nosso choro deixar a marca salgada de tristeza e felicidade. E quantos abraços, lugares e espaços por onde já se aventurou. Ele que, mesmo com seus fios já soltos pelo tempo, sempre aqueceu nas boas ou nas más horas. Eu lembro que é frio quando olho no calendário e já passou mais um ano. Sempre lembro um dia antes, mas esqueço no outro dia de manhã só porque não poderia esquecer. E lembro que você também às vezes se esquece.

Mas não consigo me lembrar quando foi que a gente esqueceu a sopa, os patos, a surpresa, a descoberta, o cheiro, os fios… E o casaco pendurado num cabide escondido, que às vezes pensamos em usar, mas desistimos. Usamos pra dormir. E na hora de dormir, aliás, é quando lembramos que era frio naquele dia, mas não importava tanto.

(Barbara Marry – junho/2015)

Significa

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Se eu fosse tão insignificante assim, saberia antes mesmo que você pensasse em sugerir tal possibilidade como justificativa para sua exclusão de minhas opiniões sobre minha própria vida, que você insiste em anular, o que não pareceria necessário se eu realmente nada significasse.

Sua necessidade e esforço em tentar me provar o quanto sou insignificante só reforça minha sensação de significar muito mais do que imagino, ainda. Se você fosse também insignificante para mim, não perderia meu tempo discorrendo sobre sua intromissão…

Você significa, sim.

Tudo aquilo o que eu quero longe de mim.

 

(Tabata Mertz, fevereiro, 2015)

SEDE

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Viver despretensiosamente, gota por gota, como um limão espremido prestes a misturar-se ao gelo e à bebida no copo. Viver a experiência de seguir em frente e mergulhar de cabeça em seu todo já vivido, com todas as tuas gotas, de choro, de suor, de felicidade.
E a sua reviravolta, a vida te mistura e te prova com a ponta dos lábios. Algumas vezes te põe açúcar por não gostar do gosto azedo. Algumas vezes não te embriaga, mistura com água. Mas em todas, vai te beber até o fim. Gole por gole. Gota por gota.
(Barbara Marry – Junho, 2014)

Coincidências póstumas

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Geraldo era simples, 60 anos de idade, 120 de mentalidade, mal falava, mal ouvia, detestava o carro cheio, preferia ganhar menos e carregar apenas um passageiro por dia.  Morro abaixo, morro a cima, abriu a porta pra um que sorria:

– Também sou Geraldo! Pode fazer uma corrida?

Geraldo não gostava de muita simpatia, homem que sorria, era problemático, sempre dizia.

-Entra e põe o cinto, pra onde vai?

– Pro cemitério do centro, ver minha mulher, a falecida.

Espantado com a empolgação de Geraldo para visitar uma defunta, Geraldo sentiu um ligeiro frio na espinha. Boa gente não sorri ao ir visitar o túmulo de alguém que convivia.

– Hoje seria nosso aniversário de casamento… Eu comprei flores, coloquei velas, preparei um jantar, nosso último aniversário foi inesquecível…a massageei da nuca à panturrilha… despi ela inteirinha…

Enquanto um Geraldo suspirava ao se recuperar da minuciosa descrição o outro Geraldo só queria chegar logo. Ia ter que parar no posto na volta, pesarosamente excitado pela história de seu xará e um cadáver, precisando gastar tudo o que ganhou percorrendo a avenida pra colocar um pouco de combustível no tanque vazio e voltar, aliviado, sem companhia.

Pensou que também queria ver a esposa. Sensação estranha que há muito tempo não sentia, sem perceber, voltou a escutar a história triste da carochinha…

– Fizemos de tudo, a noite inteira, eu passava bem rapaz…ela não deixava faltar nada! Aquilo que era mulher, minha eterna namorada…  Deixe-a dormindo em paz, liguei o carro, fui comprar cigarros, o farol abriu, o motorista não me viu… batemos!  Me lembro do hospital e do hospital mesmo pedi pra providenciarem umas flores pra quando ela chegasse… ah que aniversário! Flores pra ela no hospital, quando viesse me buscar desse acidente que quase acabou com nosso dia….

– Sabe o que eu fiz depois disso?

-Não, homem, tem mais!?

– Morri!

E com essa frase que fez o simples taxista parecer um estúpido por não entender a piada, Geraldo abriu a porta e desceu. Sem pagar.

– Geraldo! A corrida, você não pagou a corrida… gritava o taxista cemitério a dentro enquanto Geraldo desaparecia em frente uma mulher que chorava prostrada em uma lápide.

– Não foi a mulher que morreu, arregalava os olhos e pensava Geraldo, voltando para o carro, descontente, sem o dinheiro da corrida, desconfiado, se benzia:

– Crê em Deus Pai, cruz credo, Ave Maria! Só gastei gasolina. Com medo de nomes parecidos e tanta analogia, discou a cobrar pra patroa, chegaria mais cedo pra não correr o risco de bater o carro no trânsito que o enlouquecia conforme anoitecia.

-Foi o sol na cabeça, dirigi durante todo o dia, pra ter coisa de maluco, ver fantasia!

Tímido mas decidido, compraria também, depois de décadas, flores pra dona Maria.

Vai saber se é verdade, miragem ou aviso, fez o sinal da cruz:

-Tem de tudo por aí, hoje em dia…

(Tabata Mertz, janeiro, 2015)

Gente

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Por aquela que quer acreditar no que nunca viu

O que a gente faz com a saudade dessa gente que sumiu?
Uma gente que a gente pensa que é da gente, mas que com o tempo se mostra cretina, hipócrita e vil
O que a gente faz com a saudade dessa gente que na verdade nunca existiu?
Uma gente que a gente pensa que é decente, mas que quer ver a gente na puta que o pariu
Faz de conta que é verdade, essa gente já foi gente
Só pra eu justificar minha saudade ébria, ingênua e infantil

(Tabata Mertz – Janeiro, 2015)

A maçã

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Ela quis provar a maçã. Abriu-lhe o apetite observar o fruto no prato em cima da mesa. Tão vermelho, brilhante… Proibido – diriam os mais velhos.
Então sacou a mão do bolso e estendeu o braço com certa ansiedade para alcançar a maçã. A segurou com as pontas dos dedos e, depois de hesitar alguns instantes, agarrou-lhe com a mão inteira.
Gentilmente dirigiu a tentação até a boca. Seus dentes rasgaram-lhe a casca firme em uma mordida quase que brutal, um impulso. A carne macia tocou sua língua e a libertou da violência prévia. Depois a maçã ofereceu em recompensa pela sua descoberta, um sabor doce, levemente ácido. Levemente envenenado, como se fosse destinada a uma branca de neve qualquer. Mas a proibição – já diriam os mais velhos – era o sabor de sua liberdade.

(Barbara Marry – Junho/2014)

Viagem de trem para dentro de mim

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Agora eu pego aquele mesmo vagão de todas as noites. Logo que entro vejo um lugar vazio. Sento, coloco os fones e ouço a música instrumental. Percebo outro lugar vazio e, quando me dou conta, estou sozinha no vagão. Olho fixamente pro final do corredor de assentos e luzes.
Há uma porta me olhando também, com a mesma perplexidade. Imagino por instantes o que há por detrás dela e ela também me questiona: o que há por detrás de você? Permaneço com a questão mas desvio o olhar.
Cruzo com as janelas do outro vagão, esse cheio. Ele se vai tão depressa quanto posso perceber. Mantenho o olhar fixo na janela. A parede passa em alta velocidade e quase acho que estamos parados.
Volto a pensar no questionamento que a porta me fez. Nem bem volto a pensar e as portas laterais se abrem na próxima estação e o vagão vazio vai aos poucos sendo preenchido de pessoas e questionamentos.
Não vejo mais a porta e percebo que ela sou eu. Sou eu quem observa, estática e sem reação. Sou eu que me reflito porta, trancada e misteriosa.

(Barbara Marry)